segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Técnicas de abordagem

Aquele cursinho rápido de fim-de-semana propunha trazer à tona todas as verdades eficientes sobre abordagens gerais e especiais para tornar real a conquista interpessoal como instrumento de sucesso nesta (e na outra) vida de convivência sócio-comercial.
Para vender com êxito será sempre preciso abordar com técnica e eficácia.
O tema específico daquela aula chamava uma conduta agressivo-incisiva na direção de uma abordagem irrecusável.
Para vender seria necessário abordar com postura média entre decisão e persuasão. Se o objetivo era o dono do manda – o chefe, o patrão, o senhor do sim e da caneta – seria de bom alvitre conquistar primeiro a confiança e a simpatia da secretária de tal eminência. Sim, porque essa, gozava da intimidade do chefe, e detinha a lista pessoal das preferências e das restrições desse reizinho-empresário-patrão!
Pandolfo precisava vender um quinhão imobiliário de sobejo valor absoluto e relativo que, certamente traria muita alegria no contexto, para vendedor, comprador e intermediário.
Todo processo tinha seu ponto crítico exatamente no intermediário que, por acaso era ele!
O negócio era promissor. No entanto era plausível desenvolver um conteúdo de aproximação e convencimento para que tudo chegasse a bom termo.
E não bastariam argumentos simples e grosseiramente objetivos.
Seria oportuno mostrar o lado imponderável da transação: - sim, aquele aspecto emocional, circunstancial e cósmico do empreendimento, único que poderia sustentar o plus do maior preço para satisfação geral da nação.
E isso só a “secretária” poderia assimilar e transmitir, de maneira transcendental ao estimado chefe. Então era vital conquistar a secretária.
Um ramalhete de rosas vermelhas no primeiro encontro.
- “Mas o que é isso, seu Pandolfo?”
- “Nada não, apenas um agrado justo porque nada melhor e mais sugestivo do que rosas para uma rosa!”...
- “Muito obrigada – mas não precisava”.
No segundo contato uma caixa de sortidos e saborosos bombons.
- “Ah, seu Pandolfo, o senhor vai me fazer engordar”.
- “Que nada – nada pode mudar e subverter sua beleza”.
- “Obrigada!”
No terceiro, um pequeno mimo de quase ouro ornado de pedras semi, de grande efeito visual.
- “Seu Pandolfo o senhor me deixa encabulada”!...
- “Qual é (?) – é só um agrado que você fez por merecer...!”
E assim seguiu a ópera com suas várias e serpentinas etapas tragi-cômicas.
Isso era o que mandava a lição do cursinho.
Mas, afinal – o heróico Pandolfo conseguiu vender o achado imobiliário ao poderoso Sr. Chefe da homenageada e agraciada secretária?
Na verdade não.
Mas e aí – o que de útil aconteceu, depois de tamanho esforço?
Pandolfo casou com a secretária que por sinal se chama Dulce!
Quer mais? Hoje vivem felizes em casa alugada na periferia, cercados de nove lindos rebentos.
E a abordagem? Essa fica por conta do cobrador das contas do armazém, do telefone, da água, da luz e por aí vai...
Viva o cursinho!

 

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Desocupados


Nesta minha modesta vida cheia de compromissos e ocupações, que Deus benevolente não me legou mas que o diabo, safado, me obrigou, o que mais temo é a intromissão intempestiva e, óbvio, sempre inoportuna, dos famigerados “desocupados” de praxe.
São perigosíssimos! Chegam de todos os lados a qualquer hora, lépidos e fagueiros, para sugar o tempo e a paciência.
Como sanguessugas de sanga, são, inegavelmente, alegres e leves na forma, mas verdadeiros entulhos no conteúdo.
Formulam sem parar, perguntas rigorosamente sem sentido e disseminam comentários gerais fundamentalmente sem propósito.
A lógica vai pra o brejo e o bom senso é mercadoria proibida nesse assédio terroristamente sem qualquer finalidade. Na verdade o propósito existe mas não tem utilidade alguma.
Não estão no mundo para somar mas certamente para subtrair.
Meu compadre me disse que tudo isso corre por conta da solidão: - essa sensação de vazio em um mundo repleto de gente e coisas. Será pelo excesso de problemas ou a falta deles?
O fato é que o desocupado de carteirinha desistiu de administrar seu próprio interior e, portanto, passa a explorar o interior e o exterior alheio.
Tudo amistosamente. Impossível brigar com eles. Os desocupados profissionais adoram armar arapucas intelecto/relacionais de difícil escape.
Inventam situações complicadas (no terreno das hipóteses) só para embaraçar e roubar tempo dos ocupados convictos.
E ficam com aquela mira e aquela disposição, prontos para confundir nosso pensamento e dinamitar nossas regras de trabalho.
Por educação e tolerância, condutas até então politicamente corretas, vamos aceitando o jogo até o extremo da saturação. E quando, por ventura, saímos da casinha, por escassez real de paciência, e assim pronunciamos palavra mais dura e cometemos ação mais destemperada, saltam, benevolentes de lá de seu reduto comodamente desocupado e sentenciam: - “estás trabalhando demais, meu velho, precisas descansar. Afasta esse stress”...
Mal sabem eles que a gasolina desse nervosismo vêm da presença chata e aborrecida deles (?)
Será?
Será que, no fundo, não são anjos providentes e verdadeiros arautos, que só querem nos passar a mensagem de que nesta vida, nada deve ser levado tão a sério, pois, salvo melhor juízo, somos grãos de areia ou gotas d’água nesse mar sem fim que é a vida, o mundo e tudo o mais (?)
Será?
Até pode! Um brinde especial a esses anjos (ou serão diabos?) que não nos deixam morrer de trabalhar.

Lembra, Janer?

Se a nostalgia e a saudade são defeitos nesta vida corrida e cruelmente objetiva dos dias da modernidade que nos assiste, então sou um defeituoso de origem, inapelavelmente deficiente para enfrentar os tempos que correm insandecidos nos beirais do progresso.
E correm para onde?
Em busca de que?
Lembra, Janer, aqueles nossos infindáveis questionamentos sobre o que somos, de onde viemos, para onde vamos e por que?
Lembra amigo?
Lembra daqueles conturbados e acalorados debates em nosso Clube de Cinema (sim, porque televisão não tínhamos) sobre as ousadias de Gordard, Fellini, Pasolini e outros meninos malvados da cultura mundial? Lembra de Marcuse, Erich Fromun, Marx, Hunxley, Maritain e outros vândalos formadores da opinião da nossa geração?
Lembra, Janer? E o que dizer de  Sábato, Cortázar, Freire, Luscher, Aquino e outros tantos desvairados que guiaram nossas almas em busca da verdade mundo a fora?
E os duelos mortais entre as teorias da evolução e do criacionismo, as teses do acaso e a necessidade, os arrazoados sobre determinismo e caos – lembra amigo?
Lembra aquela vez que amanhecemos, ruidosamente, na Praça Central, discutindo a existência de Deus? Lembra que fomos solenemente corridos, pelos clamores do pároco apoiado pela força pública? Lembra do nosso Pirilampo, um Jornal despretensiosamente (diria inocentemente) estudantil cuja edição foi apreendida com requintes de arbitrariedade medieval? Lembra, amigo?
Pois é – tudo isso porque, enfim, queríamos um mundo melhor. Essas eram nossas armas no justo contexto de argumentos a favor da inteligência, da sabedoria e do senso crítico.
Naquela época não engolíamos gato por lebre. A filosofia era nosso esporte preferido.
Nossas brigas não ultrapassavam o sagrado terreno das idéias.
Hoje o arsenal é outro: - Abundam as drogas, as vinditas, os interesses egoístas, as tramoias, os subterfúgios, as facas, as armas de fogo, as extorsões, as subjugações e outros andamentos a favor da mediocridade e, enfim, no rumo de coisa nenhuma.
Hoje não mais se discute – se mata ou se subjuga.
Claro que há raras e honrosas exceções. Mas de tão raras por mais honrosas que sejam, sucumbem nesse caldo social sem eira nem beira do cotidiano que nos tem de favor.
Lembra Janer de nossos encarniçados debates sobre capitalismo versus comunismo emoldurados na denominada “guerra fria”?
Lembra de nossa curiosidade sobre a chamada “cortina de ferro”? E o muro de Berlim, lembra?
E aqueles bate-bocas mais caseiros sobre feminismo e machismo?
Lembra que não chegávamos a qualquer conclusão? E o capítulo das opções sexuais, doenças venéreas, anti-conceptivos, mini-saias, sungas, calças justas com boca de sino e sapatos com bico largo?
Lembra das reuniões dançantes, do rosto colado, das músicas que insinuavam a dança de corpos tão juntos onde nem o diabo cabia entre os apaixonados?
Lembra das amadas do baile, mulheres para toda vida, uma versão paroquiana de cobiçadas estrelas da sétima arte, como Cláudia Cardinali, Sofia Loren, Catarina Deneuve, (la belle de jour) Ava Garner, Lauren Bacall, Gina Lolobrigida e outras musas de tirar o fôlego?
Lembra amigo?
Inquietudes juvenis que subvertiam a ordem de nossos “comportados” dias, eivados de inocência e paixão pueril!
Éramos impertinentes mas justiça se faça, nunca matamos ou morremos por amor: - nosso credo maior sempre foi a vida. Aliás sempre cultuávamos o preceito de quem vive a vida aprende e quem deixa viver ensina.
Esquece, Janer! Tens o sagrado direito desse esquecimento. Estás em outro plano, certamente bem mais gratificante e promitente do que este dos tempos terrenos em que vivo.
Me conforta a saudade (e a nostalgia) dessa época em que tudo se movia ao alcance da alma. E confesso que alimento ainda a desvairada esperança de que, um dia, a tua sábia palavra, e meus desencontrados contra-argumentos, possam germinar ciência e consciência no âmago de algum jovem que se aventure pensar o mundo como coisa boa e útil para todos e não apenas como mercadoria de troca para coisa nenhuma!
Esquece, Janer! Eu tentarei não lembrar!
Abraço meu querido amigo!

 
*Janer Cristaldo Moreira – talentoso escritor pedritense falecido ano passado.

terça-feira, 17 de maio de 2011

EM NOME...

Quem pensou que Dom Pedrito estivesse sozinha no mapa, enganou-se. De uns dez anos pra cá, a fúria emancipatória fez surgir uma série de novos  municípios Brasil a fora. Leio e constato a existência de uma cidadezinha gaúcha denominada Dom Pedrito de Alcântara, surgida, recentemente, nessa alucinada leva emancipatorréica... (essa palavra existe??) Deveria...!
E como se chamam os moradores desse  lugar? Seriam os “Dom Pedritenses” ou os “Alcantarenses”? Ou serão os Pedritanos ou Alcanterídios?...
Indagações à parte, vale a pena conferir a porção de novos e intrigantes nomes que povoam o novo Rio Grande. E todos elegerão prefeitos e vereadores no próximo três de outubro.
Gentílicos de todos os tamanhos e para todos os gostos, serão habilmente, descascados pelos políticos em seus acalorados discursos de “convence povo”.
Os antargortenses, os ipesianos, os passasetenses e os sagradanos familienses, das respectivas Anta Gorda, Ipê, Passa Sete e Sagrada Família, terão muito o que ouvir nesta eleição. E como responderão os eleitores de Chuvisca, Mato Leitão, Rolador, Relvado e Muitos Capões?... Quem nasce em Muitos Capões chama-se como ou o quê?... Caponada? Rebanho? Tropa? O certo é que tal dúvida não há de empanar o entusiasmo dessa boa gente na escolha de um prefeito pastor ou pastor prefeito...
Mas, tem mais – tem município chamado Alegria e outro chamado Sério. Tem um denominado Mormaço e outro denominado Boa Vista do Incra... E durma-se com um barulho desses...
Para não cometer injustiça não poderei omitir o Mato-Castelhano, o Novo Machado, o São José dos Ausentes e o escorreito e bem posto Benjamin Constant do Sul...
Em destaque vem o município de Tio Hugo. E como ficará o mundo se os “tio huguenses” fecharem questão?... Que questão...? Ora, a questão do tudo e do nada ou do pino da granada... Que diferença tal fará em Roma, Paris ou Badra...?
Queiramos ou não, esses são os meandros (brasileiros) da democracia de resultados. Que resultados? Para quem vai a vantagem? Na base da conta, tem soma, multiplicação e divisão armando a equação de uma  cidadania mínima sobre interesses máximos para uma  resultante prédica. E a subtração? Essa fica por conta dos tributos gerais e das falcatruas particulares... Se alguém chegasse, de surpresa, em nosso mundinho, perguntaria, atônito: - “Por que tantos nomes se o por quê é anônimo?
Se alguém se sentir incomodado com tanta perguntação, que vá morar em Quinze de Novembro – município próspero, altivo e valoroso. Se, ainda assim, não estiver satisfeito, que pule um número e vá buscar abrigo na “dezesseis de Novembro”, bela cidade, acima de qualquer suspeita histórica, política e... matemática!
Seja qual seja (ou for) o nome, estamos todos no mesmo barco e sob o capricho da onda – circunstância, que nos empurra para uma praia de iguais. Nessa enseada comum haveremos que armar as barracas das diferenças que, enfim, nos igualam ao nome da... em nome do... em nome de...!
Até quando? Por quê?...

UM POUCO

Do todo sempre resta um pouco e o pouco que resta bastaria para fazer grande o mundo e maior a humanidade. Senão vejamos.
Não é a enxada que verte poderes milagrosos ao agricultor e sim sua competência de produzir que o faz indispensável na difícil empreitada de prover. Não é o hino, nem a bandeira, que fazem a virtude do patriota e sim sua sincera vontade a favor das causas justas de sua Pátria, que gera a luminosa postura de legítima liderança e útil convivência.
Não é a forçosa circunstância coletiva que identifica e classifica o cidadão e sim a clarividência  de sua iniciativa de serviço ao próximo, que qualifica e justifica sua ação de ser, fazer e revolucionar.
Não é o lustro da batuta que faz brilhante o concerto e sim a alma e o enlevo do maestro e dos músicos que tornam imortal a melodia.
Não é a fria fórmula do medicamento que resgata a vida e reforça os contornos da existência e sim a humanitária dedicação do médico que sara as feridas, amaina o sofrimento e repõe o sol da saúde na cabeceira dos moribundos.
Não é a tosca ferramenta que ergue a obra e sim o esforçado trabalho do construtor que a faz real, sólida e permanente.
Não é a cartilha que gera a educação e sim a dedicada consciência do professor que promove o elucidamento.
Não é o breviário que encurta nosso caminho para Deus e sim a liderança do pastor e a força de nossa fé que fazem reais as sendas da caridade e verdadeiras as estradas da esperança.
Não é o pincel que dá beleza ao quadro e sim a emoção do pintor que a colore de vida e paixão.
Não é o brilhante e caro anel que ergue os castelos do amor e sim o sentimento arrebatado do amante que exige as fortalezas do afeto.
Não é o forno que faz o pão e sim o diletante trabalho do padeiro que regenera a essência de nosso provimento material.
Não é a métrica que faz a poesia e sim o ânimo libertário do poeta que rima ensejos com desejos.
Não é a barba que faz o sábio e sim sua justa razão, mesmo imberbe, que faz a certeza do caminho e o caminho da certeza!
Não é o nariz vermelho que faz a graça do palhaço e sim seu dedo mingo, cheio de magia e arte, que aponta para o reino do riso.
Não é o texto que cria e anima verdades no coração dos leitores e sim a própria inspiração das pessoas, que faz legível o escrito e válido seu sentimento.
Do todo, um pouco para que reste um tanto para não faltar um muito e não sobrar um quanto...
 Quando?... Onde? – Aqui! Hoje um pouco – cada dia um tanto!

A CRÍTICA

Das histórias de D. Pedrito antiga, gosto muito de uma que conta a passagem de dois compadres, que vinham pela estrada do Ponche Verde, lá pela década de 40, a bordo de um Modelo A, ou coisa que o valha. Lá pelas tantas, disse o que vinha de passageiro, para o que estava no volante:
-         Mas tchê, tu não consegues nem enxergar os buracos!
-         É, e tu enxergas porque não vens manejando!
Tirando o conteúdo anedótico do causo, cabe em qualquer e sob os mais diversos pretextos, uma ilação sobre o teor crítico do incidente.
Vejam que o motorista dava-se por satisfeito, a braços com tarefa tão complicada que era a de guiar. Ao passageiro sobrava tempo e atenção para observar os solavancos. A exaustiva e exclusivista incumbência da pilotagem era ação quase sobre-humana, que ocupava todos os sentidos e exigia heróica destreza. O outro, apenas um passageiro sofrendo, solidariamente, os incômodos percalços da estrada, adensados pela intrepidez do motorista, reclamava, em altos brados e alguns galos na testa, a direção perigosa.
A lição que fica e ficará é a de que a crítica sempre estará mais à mão de quem não tem as mãos ocupadas. E não há mérito nem demérito nisso. É um fato da vida, do mundo e das circunstâncias. E, observem, bem atual e sempre universal. Se transportarmos a história para nossa relação com o Poder Público, por exemplo, veremos que tudo se encaixa. Tantas e tantas vezes reclamamos do piloto dessa mau incauta chamada Administração, quando, na verdade, a máquina é ingovernável, numa estrada tão ruim. Sejamos, no mínimo, tolerantes ou atentos e ativos co-pilotos, ajudando na travessia, em nome da boa chegada e contra os maus torcicolos...

RECEITAS LUSITANAS

“Pão de hoje; carne de ontem
e vinho de outro verão, fazem o
homem são”.
        
         Meu avô, português, com quem convivi, fraternamente, até a penúltima dobra de minha adolescência, sempre cultivou respostas lúcidas para indagações febris. Como bons amigos, seguidamente trocávamos conversas úteis, francas e afetivas. Uma distância de quase sessenta anos no tempo cronológico, era quase insuficiente para criar diferenças ou levantar barreiras nesse relacionamento, que hoje invoco com tanta saudade.
         Falávamos de política, economia, religião, custo de vida, saúde, comidas, desmandos governamentais, progresso de Portugal, atraso do Brasil – filosofia teórica e prática – e coisas do dia a dia...
         Raramente falávamos de futebol! Tal rareza encontrou seu ponto extremo na Copa de 66, quando nossa Seleção perdeu, fragorosamente, para a equipe portuguesa. Evitamos o assunto para desviarmos prováveis incômodos e desconfianças. De carnaval, não falávamos, mas sempre coloquei ouvidos para apreciar, em silêncio, sua opinião, rigorosamente crítica, a respeito dessa festa, de muito gasto e pouco proveito.
Fundidas à imagem desse amigo, estão as tiradas, as observações, as críticas, as opiniões, os conselhos, as espontaneidades e as indefectíveis receitas, tão lusitanas na forma quanto humanas no conteúdo. Nascido na região de “Trás os Montes”, província de Mirandela, a um palmo da Espanha, aprendeu a fermentar a folclórica rivalidade com os fronteiriços. E para dizer sem rebate, sentenciava: - “Da Espanha, nem bons ventos nem bons casamentos”. A quizila histórica era de fundo cultural ou circunstancial, certamente.
Mas tão antiga que não valia a pena saber a origem.
“Um bom genro – beije-se-lhe os pés”.
“Nada mais caro e perdulário do que o desnecessário”.
“Para um bom vento há sempre um mau tormento”.
Sabedoria fácil, direta, objetiva e ligeiramente ousada que me passava sem custos e condições. Certa vez, saímos pela cidade pesquisando preços de pedra de isqueiro. Se alguém se choca com a diminuta valência dessa missão, que não esqueça que toda a areia da praia é feita de grão em grão...
“Ora, não me venhas de borzeguim ao leito” – costumava dizer para neutralizar a chatice de certos assuntos ou atitudes que vêm à tona em hora imprópria.
Sentado de costas para o vazio, olho, com mansidão, as marcas que o tempo fez. Encontro nelas o contorno da promissão e vários riscos que a vida e a imensidão rascunham de graça ou por vocação.Olho o espaço e vejo todos. Olho o tempo e vejo tudo. Para que eu olhe e sempre veja, comerei o pão de hoje e a carne de ontem, regados pelo vinho do outro verão. Só assim poderei alimentar a esperança de quem, um dia, outros verão...

PENDENGAS

Carregando um pesado e incômodo gesso na perna direita, Josias resolveu cobrar do pedreiro a indenização pelo prejuízo. Acontece que o bom Josias quebrou a tíbia justamente no banheiro, ao escorregar no sabonete, em plena segunda-feira. O fato é que a saboneteira de seu Box, colocada de maneira displicente, facilitou a queda do sabonete que por sua vez patrocinou a escorregada, que então provocou a fratura.
Alguém já conferiu essas saboneteiras de parede colocadas dentro do compartimento do chuveiro? São um desastre. Sabonete usado ali não pára, nem que a vaca tussa.
E agora, o atento e querelante Josias, cobrava na Justiça a capenga conta de sua quebradura. E tinha boas chances de ganhar em todas as instâncias pois, para sorte da causa, juiz e promotor padeciam de mal semelhante, oriundo de conduta profissional culposa. Mas, afinal, onde estava o pedreiro facínora? Ninguém sabe, ninguém viu... Comentam que o pobre diabo morreu semana passada vítima de escorregão maior – simplesmente não conseguiu equilibrar-se no escasso fio de sua aposentadoria.
Ladislau quer processar o desenhista dos bancos do ônibus. Diz, e prova, que sua dolorosa escoliose provém da absoluta falta de ortopedia desse cômodo colocado, compulsoriamente, para uso e abuso de trabalhadores de baixa renda e altas obrigações como ele. Mas cadê o desenhista? Existe um desenhista? Quem saberá?
Pandolfo promete levar aos tribunais o fabricante da brilhantina. Diz e afirma que essa dita cuja alquimia é a grande responsável por sua formidável e brilhante calvície...
Careca de saber que sua gagueira vem do susto causado pelos noticiários sensacionalistas, Godofredo quer acionar a imprensa.
A unha encravada de Jasmim teve causa e origem no tosco e mal fabricado sapato da “Leva e Trás”.
Quem não sabe que as cáries de Jorginho foram provocadas pela ineficácia do dentifrício “Só Riso”?
E os pesadelos de Glorinha, quem não sabe que foram causados pela goma de mascar “Blou apel”?
Marianita quer seus direitos, ao perder o amor de Lindolfo por quilos a mais em razão daquele feijão abusado.
Quantos problemas... Quantas pendengas... O mundo só sabe brigar! Que útil seria se fôssemos mansos e compreensivos...
No tempo e na boa vontade, tudo se resolverá! Para que questionar? Sejamos pacientes. Seijammmoos paiccieentes. Oppa. O que há comm eesta makquina? Queero meeus dirreitos. Aos tribunais! Euu processo!

DEDAIS

Depois de várias tentativas, Rosália conseguira passar a linha pelo diminuto buraco de sua velha agulha. Olhos cansados, mão trêmula e luz velada, fazem penosa a tarefa costureira. Um cerzido aqui, um cosido ali, ia tecendo sua sovada solidão, atrás dos óculos turvos, do dedal amigo e das pantufas encardidas.
Gileu, o gato, agora pardo, gastava a rapa de sua sétima vida felina, sonhando com os ratos do porão. No fogão, ainda ardia o cerne daquele espinilho que Chico arrastara da tapera. Lá fora, a noite, qual manto surrado, furado de frias estrelas, caía serena sobre os ombros do pálido dia vencido. Dentro, a heróica Rosália ponteava sua treinada agulha, remendando os trapos da angústia, cosendo os andrajos do silêncio...
Agulha vai, agulha vem – quanto pensar para coser um bem!...
Maria perdeu seu filho. Que mais teria perdido Maria, se não tivesse filhos? Duas voltas de linha grossa nesse botão, para que não se despregue outra vez.
Pedro não achou sua lavra de ouro. Que ganharia Pedro, garimpando ouro, se a humanidade já se vendeu por esmeraldas? Um nó cego no cerzido para que não se rompa de novo.
Sem fé, o mundo está perdido. Sem mundo, o que seria da fé? Passa a agulha no pano grosso, com força, mas segura com o dedal pra não espetar o dedo.
Mais vale um pão na boca do que muitos na ilusão... A fome é um invento ou um descobrimento? Esta meia tem muito mais furos que tecido. Mais valerá comprar uma nova. Quanto custará? Nada menos que trinta e três remendos.
A amizade não tem limites. A inimizade também não. O colarinho não presta mais. Será preciso tirar o bolso para servir de gola. O que vale mais – o colarinho ou o bolso?...
Quem não come morre. Quem come também. Quem sacia a fome da morte? Quem?
Agulha vai, agulha vem – um dedal detém...
A felicidade está onde a pomos. Onde a pomos?
Onde está o carretel que estava aqui? Sai pra lá, Gileu!...
As linhas da mão mostram o futuro e as da testa o passado. Dizem que o destino é quem faz os traços da mão e é feito pelos da testa. Dizem...
Ih, escapou a linha, outra vez. A saudade é a filha mais velha da loucura. Ou será o contrário?...
E a paixão, o que é? E a velhice o que é?
Coser é preciso – perguntar não é.
Costurar e costurar sem parar – a barra da calça vadia, o botão do doutor, o carpim do padre, o véu da noiva, a farda do sargento, a asa do querubim, a saia da solteirona, a camisa do detento, a bandeira do Divino, o lenço do chorão, o manto da viúva, a máscara do palhaço, o cobertor do vivente, o terno do ausente, as pregas da emoção, botões da razão – retalhos do coração.
Agulha vai e vem – um dedal detém...
Quem costura minh`alma? Quem cerze meu coração?
Quem remenda meu bem e meu mal – sem usar dedal?...
Esta colcha está comida de traças mas aquele lençol esfarrapou-se de amor!...
Quem arranca minha dor? Quem conserta minha solidão?
Quero linha branca. E preta também. Onde estão os botões? Cadê o dedal? Quantos camelos, pelo buraco, passarão?
Coser é preciso – perguntar não é...
Sai pra lá, Gileu... Sai!

SE NÃO ME FALHA...

Quem já não teve tropeços de memória? Sim, aquele “branco”, justo quando se quer lembrar o nome de um amigo, um número de telefone, o compromisso inadiável, a conta para pagar, o aniversário, o horário, a fisionomia, a chave, documentos, momentos, a dentadura, o olho de vidro, a aliança, o colete, o verbete, o guarda-chuva, o endereço, o recado, o pecado, a história... Ah, essa memória que nos tortura!
Quem já não teve aqueles famosos lapsos inoportunos, no discurso de improviso, no encontro casual, na prova valendo nota, no cadastro valendo nada, no telefonema valendo tudo? Quem?
Segundo estudos de técnicos americanos, só o bicho homem tem a inigualável faculdade de esquecer ou de não lembrar. Alguém, por acaso, conhece vaca esquecida? Jacaré esquece? Saracura tem a capacidade de não lembrar? Os animais não esquecem, daí porque a justa comparação quando alguém se salienta na arte de tudo lembrar – esse tem memória de elefante...! Vá que seja!
Na média, somos todos um alegre bando de esquecidos.
Análise mais acurada do assunto exigiria alguns reparos sempre úteis para o perfeito entendimento da espécie humana. Na verdade, existem os desmemoriados e os distraídos. À primeira vista parecem vinho da mesma pipa mas, justiça seja feita, são bem diversos na soma total das parcelas.
O esquecido é isso por isso mesmo, e o distraído é o que geralmente lembra errado.
O primeiro, se não lembra, não diz. O segundo, porque nunca lembra, sempre diz as coisas mais disparatadas possíveis. Diz e faz...!
Certa vez, armou-se discussão em torno de um caso bem estranho: Um sujeito que foi ao baile e esqueceu a mulher em casa. Esquecido ou distraído?
“Pura distração”, dizia um grupo, “esquecimento puro e simples”, dizia outro. “Esse é um caso de legítima desmemória”, argumentava um dos debatedores. “O distraído autêntico jamais cometeria essa gafe, iria ao baile, só que com a mulher errada...!”
Debates à parte, todos sabemos o drama que é esquecermos o que deve ser lembrado.
Para tudo há remédio, dizem estudiosos do tema. Há maneiras e artifícios para baixar, consideravelmente, a estatística do esquecimento. Aconselham os práticos que se anote tudo em uma agenda. Dia, hora, o quê, quem, onde, por quê, tudo. Não tem erro desde que não se esqueça a agenda. Não é raro toparmos, diariamente, com uma legião de fantasmas, com olhar perdido, à caça desesperada de suas próprias agendas.
E hoje temos as moderníssimas agendas eletrônicas, verdadeiros prodígios da tecnologia, tão difíceis de manusear, tão fáceis de perder. Há quem diga ter visto uma novinha em folha, dormindo alegremente na geladeira, bem ali na prateleira das saladas. Pior se estivesse no forno...
Não é consolo, mas, vendo bem, todos, um dia, já mastigamos esse contratempo. Todos! Já os esotéricos recomendam recurso bem mais resolutivo para a questão. Sugerem o denominado artifício do “terceiro elemento”. O adequado “adorno referencial”, para onde convergiria a energia emanada do esforço de lembrar, faria a grande diferença na hora H do “tilt” da memória. Uma fita no dedo, uma melancia no pescoço, uma pedra no bolso, uma corrente de cachorro na cintura, uma nota de cem dólares colada na testa, uma jibóia enrolada no braço, um tamanco holandês no pé esquerdo, um lambari dentro da pasta, uma fotografia da Tiazinha no pára-brisa e outra do Ministro da Fazenda na carteira, são maneiras infalíveis de sempre lembrar e nunca esquecer.
Lembrar o quê, mesmo?...
Ah, som! Lembrar de não esquecer...